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A temática das práticas alternativas converteu-se, nos últimos anos, em assunto freqüente e controverso de debates travados por psicólogos e instituições que os representam, na busca de identificar e fazer valer uma fronteira fiadora da cientificidade da própria psicologia enquanto área de conhecimento e de exercício profissional. Isso se deve, entre outros, a uma proliferação daquelas práticas, exercidas à margem do controle de conselhos supervisores de atuação profissional, usualmente divulgadas com apelos e promessas tipicamente "psi", e amparadas numa crescente aceitação social de seus fundamentos para ou anti-científicos. O conflito instaurado converte-se por vezes em debate (supostamente) epistemológico e assume, em muitas ocasiões, ares de mera disputa de mercado de trabalho. Sem pretender enveredar pelos diversos problemas a que este confronto tem dado origem, é possível argumentar que há, de fato, uma fronteira entre a psicologia e as chamadas práticas alternativas quanto ao tema da cientificidade. Ao discutir brevemente essa possibilidade, entretanto, a cientificidade de uma reivindicação a conhecimento será aqui interpretada não sob o prisma dos discursos epistemológicos, mas de uma ótica mais propriamente sociológica. Isso significa confrontar a psicologia e as práticas alternativas a partir das práticas sociais características do processo de produção e validação do conhecimento que veiculam. Além disso, é inevitável que numa discussão dessa ordem se abordem aspectos éticos subjacentes aos diferentes tipos de discurso sob exame, mas não se pretende ir além de algumas sugestões acerca da possibilidade de confronto no campo ético; trata-se apenas de sugerir a articulação entre a questão da cientificidade e a dimensão ética dos referidos discursos.
1. Psicologia, práticas alternativas e cientificidade: questões preliminares.
Os conceitos de psicologia e práticas alternativas podem ser empregados com variados sentidos ou propósitos. Por psicologia, entende-se aqui, não um corpo estruturado e harmônico de conhecimentos, como freqüentemente pode ser identificado nas ciências naturais. Parte-se de um reconhecimento da diversidade e mesmo antagonismo entre diferentes abordagens psicológicas, o que significa admitir o caráter particular do modo como a psicologia tenta se constituir enquanto ciência. Todavia, isso não implica interpretar a psicologia como uma ciência imatura ou jovem, ainda a caminho de uma existência científica, como usualmente o fazem os manuais da disciplina. Essa crença numa unificação futura sequer pode ser firmemente sustentada quando se interpreta o processo histórico de constituição desse campo de saber (cf. Figueiredo, 1991). Apesar disso, as teorias que ocupam o território da psicologia, ou pelo menos algumas delas, claramente deram origem, de forma independente uma das outras, a práticas de investigação, produção e validação de conhecimento que podem ser consideradas científicas. O sentido em que o fazer ciência será empregado neste ensaio será melhor explicitado a seguir, mas pode-se adiantar que as psicologias tidas por científicas são aquelas que incorporam, com uma ou outra variação, preceitos de uma lógica empírico-racional na construção de seus aparatos teóricos (ainda que reconhecendo os limites dessa lógica e, portanto, não necessariamente buscando apreender uma essência do homem) (5) e subsistem submetendo esses aparatos a avaliações que permitam demarcar seu escopo.
A definição do que se entende por práticas alternativas depende, em larga medida, do que se assume como aspecto relevante e comum a um conjunto diversificado de explicações e propostas para a solução dos problemas humanos. Elas são alternativas à psicologia tanto quanto pretendem dar conta de problemas tradicionalmente reservados à disciplina psicológica, (6) mas valendo-se de recursos explicativos (e de um modelo de construção dos mesmos) que não se confundem com aqueles empregados por teorias científicas. O que há de comum a todas elas, desse ponto de vista, e que se mostra relevante para uma caracterização que permita contrastá-las com as psicologias, é o conteúdo místico, religioso ou supersticioso de suas explicações, como pode ser identificado na definição de Amorim (1995) que investigou a difusão e o emprego daquelas práticas no Brasil.
Prática alternativa é uma denominação genérica para um conjunto bastante heterogêneo de atividades, incluindo desde técnicas advinhatórias e de descrição de personalidade até técnicas de medicina alternativa baseadas em pressupostos místicos e religiosos. Essas técnicas, via de regra, originam-se a partir de concepções tradicionais de homem e de mundo e baseiam-se em conhecimentos pré-científicos ou embasados no senso comum. Sua utilização é habitualmente interpretada como uma busca de recursos mágicos para a solução de problemas cotidianos (Amorim, 1995, p.1, itálico acrescentado).
O alternativo não se define, então, pela atividade prescrita em si, nem pelo fato de se constituir como uma experiência nova no campo da intervenção psicológica, mas pelo tipo de conhecimento veiculado e pelas concepções de homem e de mundo a ele subjacentes. Cabem, aqui, tanto a astrologia quanto o tarot, a quiromancia, e tantas outras práticas sustentadas por apelos esotéricos (como a anjos, gnomos, etc.). As chamadas terapias corporais justificariam uma discussão à parte tanto quanto se remetem às condições de saúde/doença do organismo humano. Mas elas podem ser igualmente interpretadas como práticas alternativas na medida em que tratam aquelas condições como expressão de uma realidade humana transcorporal, e apelam, por exemplo, a temas como harmonia energética na explicação de problemas "psi" (7).
Ao confrontar as psicologias com as práticas alternativas, é preciso reconhecer que, embora os discursos de ambas estejam freqüentemente acessíveis a qualquer um, o mesmo não pode ser dito com respeito às práticas às quais cada tipo de discurso está articulado. Em algumas circunstâncias, as práticas verdadeiramente alternativas se dão em espaços abertos aos olhares alheios, mas isso nem sempre é o que ocorre; por outro lado, as práticas amparadas nos discursos psicológicos são caracteristicamente recobertas pelo segredo. Disso resulta uma dificuldade em avaliar até onde vai a relação entre discurso e prática em cada domínio. No "alternativo", é limitada a possibilidade de identificar a relação entre o que se faz e o discurso que se apresenta como fundamento daquela ação (visto que muitas vezes o alternativo também é praticado em segredo); por outro lado, é muito difícil afirmar que um psicólogo atua, no atendimento clínico, por exemplo, estritamente pautado pelo que a teoria com a qual apresenta seu trabalho prescreveria em termos de modelo de intervenção. Em razão disso, é necessário admitir que uma discussão que remeta à questão ética da prática profissional a partir da cientificidade dos discursos subjacentes ao modelos de intervenção não é suficiente para uma avaliação adequada das diferentes propostas. Entende-se, porém, que esse problema, ao invés de justificar uma desqualificação do debate sobre a cientificidade da psicologia, deve propiciar o aprofundamento do mesmo.
2. Ciência normal e solução de quebra-cabeças.
A maneira pela qual a cientificidade é mais freqüentemente discutida remete às condições de objetividade do conhecimento gerado no âmbito da ciência. Asserções objetivas são historicamente caracterizadas como isentas e purificadas de viéses humanos e sociais, a partir de um afastamento entre sujeito e objeto do conhecimento, alcançável pela obediência aos preceitos do método científico. A possibilidade de chegar-se a asserções desse tipo acerca de uma parcela qualquer da realidade, porém, tem sido objeto de inúmeros questionamentos (ver por exemplo, Rorty, 1993). Falar em conhecimento objetivo, no sentido descrito acima é, no mínimo, bastante problemático. Isso vale para qualquer ciência, inclusive para a psicologia (8), o que permite questionar-se o estabelecimento de uma fronteira entre as teorias psicológicas que se pretendem científicas e as práticas alternativas em termos da objetividade do conhecimento veiculado pelas primeiras. Mas afirmar que as psicologias científicas não veiculam um conhecimento objetivo como as vezes pretendem fazer crer não significa que deixam de ser científicas por isso; muito menos que o conhecimento que dispõem é comparável com outros tipos de reivindicação a conhecimento "psi". As psicologias científicas não apreendem, de fato, nenhuma essência especial da realidade, mas nem por isso deixam de ser científicas. O que as define como científicas, por outro lado, é o modo como se dá em seu âmbito o processo de produção e validação do conhecimento. Assim, na busca dos limites entre as práticas alternativas e a psicologia, se apresentam a seguir algumas considerações acerca da questão da cientificidade a partir dos elementos caracterizadores da prática científica, para, a partir deles, analisar a dinâmica das comunidades produtoras de conhecimento em cada um dos corpos teóricos em questão. Diferenciar um discurso "científico" de um "não-científico" tem, para os propósitos deste texto, portanto, mais uma preocupação de marcar formas distintas de construir e regular um saber, do que fornecer de antemão distintos valores de verdade a tais discursos.
Dentre as análises metacientíficas de maior repercussão contemporânea encontra-se a realizada por Kuhn (1978). Em sua investigação sobre a dinâmica e a estrutura das comunidades científicas, Kuhn optou por uma abordagem essencialmente histórica e sociológica sobre o fenômeno. Ao fazer isso, identificou dois tipos distintos de práticas científicas ou de fases por que passariam as ciências: a ciência "normal" e a ciência "extraordinária". A primeira envolveria o trabalho cotidiano e estável da pesquisa realizada por uma comunidade, onde haveria um certo consenso em torno do que seria relevante pesquisar e dos métodos adequados para isto (o "paradigma"); a segunda, diria respeito aos momentos de quebra da estabilidade da pesquisa "normal", quando o conjunto de crenças ao redor do qual o grupo estaria unido, passaria a ser colocado em dúvida e teorias concorrentes, incompatíveis com a teoria/paradigma em vigor, seriam criadas e consideradas como possíveis caminhos para a superação da crise. Para os fins deste trabalho, destacar-se-ão alguns aspectos da estrutura e funcionamento da ciência dita "normal", que para Kuhn (1979), consistiria na maior parte da pesquisa científica básica (p.9).
A ciência normal estaria intrinsecamente relacionada a vigência de um "paradigma", definido por Kuhn (1978) do seguinte modo:
Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (p. 13, itálico acrescentado).
O paradigma uniria o grupo de pesquisadores em torno de um conjunto de crenças e forneceria a ele um ponto de partida seguro para as investigações, já que "a ciência normal (...) é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo" (Kuhn, 1978. p.24). De fato, o paradigma, além de constituir-se na base sólida de onde os cientistas se lançariam para desvendar o mundo, indicaria o próprio mundo a ser desvendado e os caminhos apropriados para tal tarefa:
É a ciência normal que revela, ao mesmo tempo, os pontos que devem ser testados e a maneira de testá-los (Kuhn, 1979. p. 4, itálico acrescentado).
Kuhn (1978) descreve a tarefa do cientista dentro da ciência normal, circunscrita, portanto, pelo paradigma vigente, como uma tarefa de "limpeza", onde parece ocorrer:
... uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; freqüentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma (p.45).
Apesar de com isso reduzir imensamente o espectro tocado pela ciência, o que é tocado, no entanto, o é feito de maneira exaustiva e quase microscópica. A ciência normal seria, portanto, marcada pela existência de paradigmas, que, por sua vez, alimentariam a pesquisa através do fornecimento de "quebra-cabeças" ou de "charadas" a serem respondidas pelos cientistas. Um quebra-cabeças seria um conjunto de problemas empírico-conceituais derivados e limitados pelo paradigma em vigor. Kuhn (1979) descreve assim a situação:
Quando está às voltas com um problema de pesquisa normal, o cientista deve postular a teoria corrente como regra do seu jogo. Seu objetivo é resolver uma charada, de preferência uma charada em que outros falharam, e a teoria corrente é indispensável para defini-la e assegurar que, em havendo talento suficiente, a charada poderá ser resolvida" (p. 9).
Importante notar que os cientistas nesta ocasião visam expandir o alcance e confirmar (não falsear) a validade do paradigma. A pesquisa normal é antes de tudo expansionista, auto-corretiva e conservadora. A pesquisa parte de um conhecimento supostamente consolidado e ancorado em relativas certezas sobre o mundo, os chamados paradigmas. Entretanto, não há paradigma quando não há quebra-cabeças a serem resolvidos. Uma teoria/explicação que não prescreve a investigação de um conjunto de problemas não seria propriamente científica. O paradigma, enquanto elemento constitutivo do saber científico e fomentador da atividade de investigação, não exerce nunca a função de explicação acabada e definitiva de uma parte da realidade.
O caráter conservador da ciência normal não pode ser confundido com uma dogmatização do conhecimento existente. Longe de cristalizar e eternizar os paradigmas em vigor, Kuhn (1978) reconhece nesta fase o motor dos avanços do saber científico, pois, é só quando um paradigma é investigado minuciosa e exaustivamente, que seus limites começam a ser testados de modo inequívoco e convincente pela e para a comunidade que o sustenta. Sem tamanho investimento e centralização investigativa, talvez os paradigmas jamais chegassem a ruir. Portanto, o conservadorismo reinante na ciência normal constitui-se, paradoxalmente, na semente das revoluções científicas:
Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e conseqüentemente de uma ocasião para a mudança de paradigma (...) O próprio fato de que, freqüentemente, uma novidade científica significativa emerge simultaneamente em vários laboratórios é um índice da natureza fortemente tradicional da ciência normal, bem como da forma completa com a qual essa atividade tradicional prepara o caminho para a sua própria mudança (Kuhn, 1978. p.92).
Curiosamente o que estaria sendo testado na investigação científica normal não seria, a princípio, a validade ou não do paradigma em vigor, mas a destreza do cientista em solucionar os problemas colocados pelo próprio paradigma:
É evidente que quem se propõe a um tal empreendimento precisa testar com freqüência a solução conjetural do enigma que seu engenho lhe sugere. Mas só é testada a sua conjetura pessoal. Se ela não passar pelo teste, só se impugna a capacidade do cientista e não o corpo da ciência corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqüência na ciência normal, esses testes são de um gênero peculiar pois na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe à prova (Kuhn, 1978. p.9).
O fracasso individual em ciência normal, quando particularizado, não seria suficiente para colocar o paradigma sob suspeita. Ocorreria em um primeiro momento um processo de "autopenitência" da parte do descobridor da inconsistência do paradigma. Contudo, o acúmulo de descobertas e mais ainda, a descoberta destas inconsistências por grandes nomes da ciência levariam ao exame mais crítico da base teórica sobre a qual toda comunidade estaria assentada e à posterior criação de paradigmas concorrentes.
Retornando ao elemento fundamental da atividade de pesquisa, ainda em ciência normal, convém notar que a tarefa de resolução de quebra-cabeças ou de charadas seria, para Kuhn (1978 e 1979), o ponto crucial na definição do que viria a ser uma atividade "científica". Essa idéia é exemplificada por Kuhn (1979) no momento em que, ao contrastar seu ponto de vista com o de Sir Karl Popper, descreve as razões pelas quais a astrologia não seria considerada uma atividade científica. Diz ele:
Comparem-se as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a predição de um astrônomo falhasse e seus cálculos conferissem, ele poderia esperar corrigir a situação. Os dados podiam estar errados: velhas observações podiam ser reexaminadas e novas mensurações feitas, tarefas que criavam uma quantidade de quebra-cabeças de cálculo e instrumentação. Ou talvez a teoria necessitasse de ajustamento, quer pela manipulação de epiciclos, excêntricos, equantes, etc., quer por reformas mais fundamentais de técnica astronômica. Por mais de um milênio tais foram os enigmas teóricos e matemáticos em torno dos quais, juntamente com suas contrapartidas instrumentais, se constituiu a tradição astronômica. O astrólogo, em compensação, não tinha esses quebra-cabeças. A ocorrência de fracassos poderia ser explicada, mas os fracassos particulares não deram origem a enigmas de pesquisa, pois nenhum homem, por mais habilitado que fosse, poderia utilizá-los na tentativa construtiva de revisar a dificuldade, em sua maioria fora do conhecimento, do controle ou da responsabilidade do astrólogo. Os fracassos individuais eram correspondentemente não-informativos, e não se refletiam na competência do prognosticador aos olhos de seus colegas profissionais (Kuhn, 1979, p.15).
Ao se mostrar incapaz de produzir e nutrir charadas a serem respondidas pelos membros do grupo, tal prática seria estéril e meramente "instrumental", no sentido de constituir-se mais como uma técnica acabada a ser aplicada às coisas do mundo do que um conjunto de regras e crenças que pudessem guiar a construção de um corpo de conhecimentos sobre este mundo. Mais ainda, o processo de auto-correção externo ao produtor de conhecimentos estaria ausente e sérias implicações éticas poderiam ser levantadas. Note-se que o fato desta prática não ser considerada científica, não exclui sua possível validade. Seu discurso é "não-científico" simplesmente por não possuir o principal elemento caracterizador da prática científica e tal afirmativa não possui sentido valorativo:
Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas pelas mesmas pessoas, incluindo Ptlomeu, Kleper e Tycho Brahe, nunca existiu um equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de charadas. E sem charadas, que pudessem primeiro desafiar e depois atestar o engenho do profissional, a astrologia não poderia ter-se tornado ciência, ainda que as estrelas controlassem, de fato, o destino humano (Kuhn, 1979, p.16, itálico acrescentado).
Observe-se que, neste trecho, Kuhn sequer entra no mérito da validade das explicações astrológicas. O que importa notar é que, ainda que as crenças astrológicas correspondessem de fato a algo na realidade, elas não poderiam ter-se convertido em ciência, pelo simples fato de que não pretendem e não geram quebra-cabeças investigativos. A competência do astrólogo, nesse contexto, em nenhum sentido se coloca como dependente de um convencimento intersubjetivo de sua engenhosidade e eficiência na exploração das possíveis derivações preditivas da crença abraçada.
Problemas semelhantes aos levantados por Kuhn podem ser identificados mesmo no contexto de análises da ciência que divergem quanto aos aspectos definidores dessa prática. A noção de comunidade científica, indispensável para a interpretação da ciência enquanto solução de quebra-cabeças originados de um paradigma consensualmente admitido, se articula, por exemplo, com a discussão sobre critérios externos ao fazer ciência que delimitam essa prática e com os quais critérios mais propriamente internos se articulam (9). Por outro lado, a discussão sobre esse nível de determinação do fazer ciência evidencia que não faz sentido falar-se de um pensamento lógico-científico sem que a isso se articule a argumentação como aspecto inseparável do processo de validação do conhecimento científico. Em qualquer circunstância a intersubjetividade é vista como constitutiva do saber científico. Ela, por um lado, impõe o reconhecimento da dimensão histórico-social de toda reivindicação a conhecimento, mas, por outro, ela provê critérios de corrigibilidade que funcionam na limitação do que pode ser idiossincrático ou tipicamente pessoal (10). O aspecto talvez mais positivo da dimensão intersubjetiva do discurso científico é que ela preserva a possibilidade do questionamento e da crítica. Numa análise em que parte de uma discussão da ciência bastante diversa da apresentada por Kuhn, e em que reconhece as dificuldades em demarcar a questão da cientificidade nas ciências sociais, Demo (1989) ilustra essa dimensão da ciência do seguinte modo:
O critério de cientificidade - em meio a esta polêmica interminável - que nos parece mais aceitável é o da discutibilidade, entendido como característica formal e política ao mesmo tempo. Somente pode ser científico o que for discutível (p.26, negrito do autor) (11).
É essa discutibilidade, por sua vez, que impõe à ciência uma exigência de consistência lógico-conceitual na construção de seu discurso explicativo de uma dada realidade. O saber científico converte-se, assim, num saber que precisa justificar-se argumentativamente, o que previne contra a imposição de um discurso pela renúncia à avaliação crítica por parte de quem o acata e/ou através do apelo à autoridade de quem o profere.
3. Psicologia, práticas alternativas e ciência normal.
A pertinência de se utilizar o modelo de interpretação da ciência provido por Kuhn (1978), na análise da disciplina psicológica, pode ser questionável em razão do fato de não ser possível apontar a vigência de um paradigma consensualmente acatado pela comunidade de praticantes dessa ciência. Quando se examina o problema por essa ótica, tende-se a caracterizar a psicologia como uma ciência pré-paradigmática, com isso sugerindo-se a existência de discursos alternativos que concorrem entre si, sem que qualquer um tenha mostrado sua própria superioridade enquanto teoria psicólogica capaz de unificar os discursos explicativos e os esforços investigativos da comunidade de psicólogos como um todo. Schultz e Schultz (1992), fazendo uso dos conceitos empregados por Kuhn (1978) exemplificam essa interpretação da psicologia do seguinte modo:
A psicologia ainda não atingiu o estágio paradigmático. Durante os mais de cem anos de sua história, ela tem buscado, acolhido e rejeitado diferentes definições, mas nenhum sistema ou ponto de vista individual conseguiu unificar as várias posições. (...) O campo permanece especializado, e cada grupo adere a sua própria orientação teórica e metodológica, abordando o estudo da natureza humana a partir de diferentes técnicas, e promovendo a si mesmo com jargões e revistas diferentes, e com todos os outros adereços de uma escola de pensamento (Schultz e Schultz, 1992, p.30).
A diversidade e até incompatibilidade das propostas teóricas hoje encontradas no campo da psicologia, deve-se notar, aparecem sob a forma de divergências que vão muito além de uma disputa acerca de qual a melhor explicação para o fenômeno psicológico; ela envolve a própria definição do que é esse fenômeno e do que significa conhecê-lo. Figueiredo (1995a) caracteriza este problema afirmando que:
... é preciso reconhecer que nem temos uma delimitação unívoca do campo, uma compreensão partilhada do que é fundamentalmente nosso objeto, nem, muito menos, há entre nós consenso sobre como gerar e validar conhecimento. De fato, não há nem mesmo consenso quanto ao que é conhecer (p.22).
Pela análise de Kuhn (1978), não se teria neste contexto as condições para a emergência da pesquisa científica propriamente dita. Diz ele:
A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade científica pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como: quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (Kuhn, 1978, p.23).
Mas derivar da falta de unidade teórica a inexistência de uma prática científica articulada e eficiente parece fazer sentido apenas para ciências cujo campo investigativo se mostra razoavelmente estruturado em torno de preocupações e problemas partilhados por seus praticantes (É apenas no espaço desse campo investigativo comum que podem se dar disputas explicativas e consensos paradigmáticos). Esse não é o caso da psicologia que, não por razões de imaturidade, mas como resultado de determinantes histórico-culturais, se constitui atravessada por um conjunto de práticas e discursos conflitantes acerca da natureza humana, e sob a forma de sistemas explicativos que de modo diferenciado espelham aquela história social, como tem sido argumentado por Figueiredo (1991; 1992; 1995a; 1995b). Nesse contexto, falar de uma unidade seria o mesmo que exigir o esquecimento de parte (ou o ocultamento do caráter contraditório) da história sob a qual se erigiu o campo psicológico. Isso não significa que as teorias psicológicas não se vêem como disputando um mesmo campo do saber e não tenham, cada uma, a convicção de que podem dar conta sozinhas dos problemas colocados para a psicologia. Ou seja, é possível que uma teoria psicológica tenha a pretensão de provar-se capaz de unificar os esforços explicativos e investigativos do campo psicológico. Isso ocorre, por exemplo, quando um autor fornece "transcrições" dos postulados de uma outra abordagem diversa da sua com os conceitos de seu próprio sistema teórico (12). Entretanto, menos do que esclarecer de modo fiel a explicação concorrente, o que se alcança em geral é uma melhor explicitação do próprio ponto de vista. Quer dizer, no espaço de uma teoria psicológica, as diferentes teorias se mostram como concorrentes e é possível pensar uma unidade teórico-metodológica futura com a afirmação da superioridade de uma alternativa explicativa. Do ponto de vista de uma interpretação histórica da psicologia, porém, essa possibilidade é no mínimo questionável e provavelmente independente do que puder ser provado verdadeiro no âmbito de uma proposta qualquer.
A despeito da falta de unidade, no interior de cada sistema explicativo propriamente "psicológico", engendrou-se o que pode ser legitimamente caracterizado como um paradigma, no sentido kuhniano. Vale dizer, seja nos comportamentalismos, nos cognitivismos ou na psicanálise (ou em algumas versões de cada um), é possível falar-se de comunidades que se constituem enquanto tal não apenas a partir de um acordo acerca de seu objeto de estudo e dos modos de produção e validação de conhecimento, mas, também, sobre um modelo explicativo do que entendem ser o fenômeno psicológico, que exerce a função de gerar problemas de investigação capazes de firmar (ou não) a generalidade da teoria. São explicações, portanto, que se mostram paradigmáticas no sentido de que têm uma existência articulada à pesquisa, à investigação de quebra-cabeças. Em cada uma destas áreas os novos pesquisadores não precisam (re)construir o seu conhecimento do zero; ao contrário, partem de alguns pressupostos bem consolidados, partilhando crenças sobre "o que é o mundo", quais os elementos existentes no universo e a sua natureza, quais os fenômenos relevantes para uma investigação, onde residiriam suas causas e como identificá-las na natureza. Um conjunto de crenças unificaria o grupo e apontaria as questões cruciais a serem investigadas e as maneiras adequadas para isto. Enfim, forneceria as charadas a serem respondidas e as regras para a tarefa. Considere-se a Análise Experimental do Comportamento, por exemplo: seus membros recém chegados aprendem desde cedo a interpretar o universo como dotado de dimensões físicas e regido por leis que podem ser identificadas através de uma investigação empírica. Aprendem que o seu objeto de estudo é o comportamento dos organismos e que as variáveis histórico-ambientais seriam suas causas legítimas. Adotam o modelo da tríplice contingência para sua expedição científica e alteram sistematicamente as variáveis ambientais antecedentes e conseqüentes, ao mesmo tempo que registram acurada e exaustivamente a freqüência de uma dada resposta eleita preliminarmente do repertório de um organismo. O "paradigma operante" gerou inúmeros quebra-cabeças para os analistas do comportamento e ainda os gera (13).
Tanto quanto na análise do comportamento, no contexto de outras abordagens psicológicas a explicação teórica cumpre uma função de alimentar um processo de investigação. Em volta delas, constituem-se comunidades que se unem na exploração das potencialidades de um mesmo paradigma, editam revistas especializadas e realizam congressos periódicos, colocando sob controle dos pares as pretensões a conhecimento. As diferenças metodológicas podem ser significativas e são derivadas da própria diversidade dos aparatos teóricos, mas dificilmente se pode apontar o abandono do requisito de se mostrar sustentável diante da experiência e do raciocínio articulados.
Se, por um lado, é possível falar de um fazer ciência no âmbito das teorias psicológicas, por outro, é claramente impossível abordar desse modo as reivindicações a conhecimento das chamadas práticas alternativas. O indicador mais evidente é o de que não se constituem em volta desses discursos comunidades voltadas para a pesquisa, o que resulta do fato de não prescreverem quebra-cabeças a serem solucionados (14). Mesmo quando eventualmente não se apresentam como um corpo acabado de saber, a possibilidade de produção de conhecimento novo se mostra relacionada a dois fatores relevantes (e diferenciadores da prática científica). Primeiro, o que existe não é tido por provisório (muito menos, por histórico), mas apenas por incompleto. E, segundo, o processo através do qual pode se dar a expansão em nada se compara com as práticas sociais características do fazer ciência (aliás, sequer se trata de um processo social). Esses aspectos dos discursos alternativos são em alguma medida ilustrados pela análise de Soares (1994). Diz ele que a maneira como a ordem existente na natureza é pensada nos discursos alternativos em geral envolve uma lógica que se esclarece quando se analisam
.. as condições sob as quais se pode efetivar o acesso do homem aos segredos universais e as peculiaridades das formas possíveis de acesso, segundo o senso comum alternativo, mais ou menos independentes de crenças específicas (p.194).
As condições de acesso aos segredos universais, ou ao conhecimento dessa realidade transcendental, diferem das condições sob as quais se permite falar de conhecimento no âmbito dos discursos científicos. Para os discursos alternativos,
... as vias prioritárias são os ensinamentos revelados e as experiências místicas, nos casos mais expressamente religiosos, e a sensibilização receptiva da intuição (Soares, 1994, p.194).
Essas vias, pode-se perceber, em nada se parecem com o processo de testar previsões (contidas na explicação original) acerca do fenômeno que se pretende estar conhecendo. O recurso ao pensamento racional, coerente e crítico tem, nesse contexto, quando muito, uma função periférica, condicionada pelas condições acima descritas. Diz Soares (1994) a esse respeito:
As participações da razão devem se adequar aos constrangimentos impostos pelas demais vias de "conhecimento", limitando-se a apoiar, articular, traduzir e completar o material apreendido pela via direta das conexões cósmicas (p.194).
Na medida em que não são os parâmetros da ciência que se constituem enquanto via de acesso ao conhecimento da realidade em foco, não é à luz deles que faz sentido avaliar os discursos alternativos. O conhecimento que se elabora sob a égide de uma concepção mística da "natureza"
... encontra seu amparo e fundamento antes no meio pelo qual foi obtido do que em seu valor intrínseco, demonstrável argumentativamente ou verificável experiencialmente (Soares, 1994, pp.194-195).
Justamente as exigências de argumentação e de articulação com a experiência são aqui afastadas enquanto critérios dotados de legitimidade para o inquérito acerca da validade e pertinência dos discursos alternativos. A aceitação desses discursos deve se dar por uma espécie de comunhão ou aderência movida por um sentimento ou identificação que se dá em outro plano da existência humana. Não se tem, aqui, a intersubjetividade como critério e dimensão inseparável do conhecimento reivindicado (15).
Parece justificado, portanto, falar de uma distinção entre a psicologia e as práticas alternativas quanto à cientificidade, ainda que esta última seja interpretada a partir da especificidade das práticas sociais nela envolvidas. Deve-se reconhecer, por outro lado, que a inconsistência dos discursos objetivistas em ciência, e na psicologia em particular, coloca o problema do confronto entre explicações concorrentes como insolúvel através do apelo a instâncias que se pretendam neutras ou capazes de legislar sobre o status de cada reivindicação a conhecimento a partir de supostas condições de correspondência com a realidade. Enquanto isso, ainda se impõe a necessidade de se dispor de alguma referência para lidar com conflitos dessa natureza. É nesse contexto que as dimensões éticas dos diferentes discursos têm sido apontadas como uma alternativa legítima para o confronto. Figueiredo (1995a) alia-se a esse movimento afirmando:
Será, então, que o abandono do projeto epistemológico moderno e das versões normativas das epistemologia nos deixaria imersos na indecisão e na impossibilidade completa de justificar racionalmente nossas opções teóricas e práticas? É nesta conjuntura que a dimensão ética dos discursos e práticas das psicologias emerge como o plano no qual uma nova racionalidade poderá ser exercida (p.24).
O modo particular como a possibilidade de confronto a partir do componente ético é elaborada por Figueiredo (1995a) na análise da psicologia, e mesmo das práticas alternativas, é bastante original e remete aos tipos de experiência que se constituem a partir dos diferentes discursos do campo "psi" (16). Dados os objetivos desse texto, porém, o que se pretende é apenas sugerir que a opção pelo campo ético como espaço de confronto não afasta do debate a questão da cientificidade.
Quando o caráter científico de um discurso é interpretado não sob o prisma de pretensões objetivistas, mas a partir das práticas sociais que constituem seus modos de produção e validação, pode-se legitimamente falar de uma relação entre cientificidade e ética. Nesse caso, mesmo assumindo-se a dimensão ética dos discursos como o campo no qual se devem contrastar e avaliar as diversas alternativas explicativas, a discussão acerca da cientificidade dessas alternativas faz sentido.
Um aspecto do processo de produção e validação do conhecimento científico que se destaca em análises como a de Kuhn, e que parece relevante para a discussão sobre a dimensão ética dos discursos científicos, é o reconhecimento do caráter provisório desses discursos e a exigência de que possam gerar a investigação acerca de sua possível capacidade de dar conta dos problemas com os quais a comunidade deve lidar. Isso confere à ciência uma dimensão intersubjetiva capaz de prevenir contra o dogmatismo e de preservar a possibilidade do questionamento crítico. Nesse processo, a própria ciência é forçada a se reconhecer como limitada, em alguma medida, pelos valores e interesses da sociedade na qual se desenvolve. Ela não comporta, por outro lado, promessas de solucionamento mágico dos problemas humanos (17), muito menos confere legitimidade a quem profere tais promessas.
Ao se apresentar como um conhecimento cuja produção se dá através de processos independentes da razão e da experiência articuladas, e cuja validação impõe a renúncia àquelas duas instâncias como condições para seu julgamento, as práticas alternativas veiculam não apenas uma concepção de conhecimento, mas também uma concepção de homem e de mundo que tende a dissimular o modo como as relações concretas dos indivíduos em sociedade são capazes de determinar suas crenças e suas condutas. Em sua análise do material de divulgação de várias práticas alternativas, Amorim (1995) assinala, por exemplo, que o homem é visto como
... um desmembramento daquilo que já é potencialmente. O homem não é tido como um ser em construção; o homem já é dado a priori, quer por determinantes potenciais, inatos, cósmicos ou arquetípicos. Além disso, apesar de uma aparência de livre-arbítrio, decorrente da ênfase em potencialidades quase que infinitas, o homem deve sempre estar de acordo com uma instância transcendental, não importando o nome que esta receba (p.85).
Esta concepção de homem envolve uma concepção acerca da determinação do homem que fica evidente também no seguinte trecho:
As técnicas preditivas em geral ... - das quais a astrologia é a mais freqüente, preocupam-se em última análise com a descrição de determinantes externos - ciclos naturais, eventos cósmicos - para os problemas humanos (...) Conhecer-se é então identificar seus determinantes - cósmicos, naturais ou arquetípicos, sua "verdade interior", sanar o rompimento, a fragmentação e o desequilíbrio, "colocar-se no seu ritmo natural" (p.84).
Ora, o apelo a instâncias transcendentais (que não se impõem justificações adicionais exatamente porque postulam vias de acesso e critérios de validação diferentes dos científicos) na explicação dos problemas humanos cumpre uma dupla função: de um lado, protege as práticas alternativas contra o questionamento crítico e a exigência de demarcação do escopo de sua validade; de outro, produz o desconhecimento, a dissimulação ou a ignorância acerca de determinantes externos deste mundo, muito próximos de cada um e em grande medida responsáveis pelas condutas e crenças dos indivíduos, inclusive as "alternativas" (uma ignorância, aliás, capaz de alimentar o conformismo e a acomodação política). Além disso, embora freqüentemente apelem a temas como "integração", "harmonia", etc., sugerindo a existência de um tipo de interdependência (ou comunhão) a que os indivíduos estão submetidos, os discursos das práticas alternativas, exatamente por obscurecerem os determinantes histórico-sociais do homem, alimentam, paradoxalmente, a cultura do individualismo (18). É importante notar, ainda, que esse individualismo é indispensável para a própria sustentação do processo de produção e validação do conhecimento tal como ele se dá na esfera daqueles discursos.
Questões desse tipo evidenciam-se através da discussão sobre a cientificidade dos discursos que habitam o território da psicologia e claramente têm pertinência para uma reflexão sobre sua dimensão ética. É preciso reconhecer que a psicologia (como outras ciências) nem sempre se apresenta ou se reconhece como científica nos termos em que a ciência foi aqui abordada e isso merece ser examinado. Mas essa atitude não deveria ser confundida com a desqualificação do debate sobre a cientificidade, sob pena de se perder uma boa oportunidade de fazer do conflito uma ocasião para a construção de uma imagem mais crítica dessa área de conhecimento.
Referências
AMORIM, C. F. R. B. (1995) Um panorama do uso de práticas alternativas como técnica de diagnóstico ou intervenção e suas relações com a psicologia. São Paulo: Relatório de Pesquisa, não publicado.
DEMO, P. (1989) Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Ed. Atlas 2a edição revista e ampliada.
FIGUEIREDO, L. C. M. (1991) Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes.
FIGUEIREDO, L. C. M. (1992) A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação (1500-1900). São Paulo: Escuta/EDUC.
FIGUEIREDO, L. C. M. (1995a) Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos.. São Paulo: EDUC; Petropólis: Vozes
FIGUEIREDO, L. C. M. (1995b) Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos. São Paulo: Escuta/EDUC.
KUHN, T. S. (1978) A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,2a edição.
KUHN, T. S. (1979) Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? Em Lakatos, I. & Musgrave, A. (orgs.) A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/EDUSP.
MALOTT, R. W. (1995) Freud and behavior analysis. The ABA Newsletter, 18, 1.
RORTY, R. (1993) Solidariedade ou objetividade. Novos Estudos CEBRAP, 36, 109-121.
RUSSO, J. (1993) O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
SCHULTZ, D. P. e SCHULTZ, S. E. (1992) História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 5ª edição, revista e ampliada.
SIDMAN, M. (1986) Functional analysis of emergent verbal classes. Em Thompson, T. & Zeiler, M. D. (orgs.) Analysis and integration of behavior units. Hillsdale, N. J.: Erlbaum.
SOARES, L. E. (1994) O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
(1) Este texto foi originalmente publicado em MORETZSOHN, R. F. (Coord. Edit.) Psicologia no Brasil: Direções Epistemológicas (pp.81-110). Brasília: Conselho Federal de Psicologia.
(2) Os autores agradecem a colaboração de Cacilda Amorim na preparação deste artigo.
(3) Departamento de Psicologia Experimental/Universidade Federal do Pará, CNPq.
E-mail: tourinho@amazon.com.br
(4) Doutorando em Psicologia na Universidade de São Paulo, CNPq.
E-mail: carvneto@usp.br
NOTAS
(5) Isto é, ainda que não partilhem e até se façam críticas de um ideal representacional típico dos discursos modernos ou modernizantes que lhes deram origem, as psicologias científicas não deixam de incorporar os recursos de uma experiência e/ou reflexão articuladas na elaboração de suas teorias; elas não se eximem de uma defesa empírica e argumentativa de suas teses e nem pretendem validá-las fora desse campo, com o recurso, por exemplo, a instâncias transcendentais.
(6) Amorim (1995) identifica na publicidade das práticas alternativas um conjunto de "... promessas classificadas como psicológicas; na verdade, generalidades ‘psi’: promessas de auto-conhecimento, crescimento pessoal, desenvolvimento da consciência, desbloqueios emocionais e outras" (p.80).
(7) Russo (1993), ao tratar da ideologia subjacente às terapias corporais, fala de uma "concepção ideal de um indivíduo pleno de poderes, que tira sua força da comunhão com a natureza, capaz de curvar a sociedade a seus desejos e impulsos. Indivíduo que comunga com seus semelhantes não uma cultura ou uma linguagem, mas a imersão no oceano cósmico da Energia Vital. E que, por isso mesmo, se faz na mais completa solidão" (p.203, itálico acrescentado).
(8) Vale notar que, do ponto de vista de suas raízes históricas, a psicologia se institui enquanto campo de saber exatamente a partir do advento dos conceitos de método e de objetividade. Contraditoriamente, porém, reserva-se à psicologia exatamente o conteúdo humano a ser expurgado pelo método. As implicações dessa condição histórica do objeto da psicologia são bem examinadas por Figueiredo (1991; 1995a).
(9) Essa articulação está muito mais próxima do que a distinção interno-externo pode sugerir. Como assinalado por Demo (1989) "as atribuições ditas externas o são na origem, mas fazem parte integrante do jogo, desde que consideremos o débito social como componente da própria tessitura científica" (p.22).
(10) Nesse sentido, as pretensões objetivistas que acompanham a emergência do conceito de método podem até ser insustentáveis quanto à possibilidade do método prover o acesso à essência de uma realidade, mas isso não implica negar a dimensão restritiva do método quanto às interferências de componentes caracteristicamente pessoais. Esses não deixam de estar presentes no processo científico de produção do conhecimento, mas estão submetidos a constrangimentos mais propriamente histórico-sociais.
(11) Demo (1989) explicita essa discutibilidade do seguinte modo: "Significa, no lado formal, que o discurso: deve ser formalmente inteligível, lógico, bem sistematizado, competente em termos instrumentais; não deve levar à confusão, à indeterminação, mas à explicação, que permita aumentar o nível de compreensão da realidade; deve ser criativo e disciplinadamente voltado para a realidade. Significa, no lado político, que: não se colhem resultados definitivos, a não ser nas ilusões totalitárias; não cabe o dogma; não param as ciências sociais no discurso, mas devem assomar o diálogo, ou seja, comunicação de conteúdos; não há como separar teoria e prática, a não ser para escamotear práticas escusas ou esconder interesses; o estudo dos problemas tem a ver com suas soluções; caso contrário, tornam-se ciências anti-sociais" (pp.26-27)
(12) Ver por exemplo, a recente tentativa de Malott (1995) de "traduzir" para uma linguagem behaviorista os conceitos-chave da psicanálise freudiana.
(13) Vale notar, atualmente, nesta disciplina, a existência de uma proposta de "expansão" do paradigma da contingência de três termos para uma de quatro ou mais termos (Sidman, 1986) na tentativa de lidar com um conjunto de fenômenos tradicionalmente chamados de "cognitivos" e caracteristicamente mais complexos do que os repertórios até então estudados por essa disciplina. Apesar de algumas incompatibilidades existentes entre as duas propostas de investigação behaviorista, não parece haver, ainda uma "crise do paradigma" como descrita por Kuhn (1978). De fato, o que hoje ocorre nesta comunidade parece ser mais um ajustamento ou acomodação do antigo paradigma, uma das atividades previstas durante a resolução de quebra-cabeças, do que a sua substituição por um paradigma concorrente.
(14) Quanto ao tipo pesquisa possível de ser realizada pelas práticas alternativas, quando muito há uma "releitura" do corpo de conhecimento existente, porém sem nenhuma similaridade com as revisões teóricas realizadas no âmbito da ciência. Exemplo disso, é a recente criação de um tarot "amazônico", no qual as figuras originais foram substituídas por equivalentes mitológicos "mais próximos da realidade cultural dos povos da região".
(15) É apenas na ausência dessa dimensão intersubjetiva no processo de produção do conhecimento que se torna possível a alguém obter sucesso (especialmente financeiro) e prestígio social pela simples reivindicação de ter tido uma "revelação" transcendental. O que quer que tenha acontecido, seus livros venderão alguns milhares de exemplares e a exigência de comprovação empírica ou argumentativa de suas teses será considerada tão descabida quanto a indagação acerca de possíveis problemas de investigação a serem dali derivados.
(16) Diz Figueiredo (1995a): "... cada uma das diferentes doutrinas psicológicas ... não é basicamente um modo de representar o psicológico, mas um dispositivo apto a propiciar, configurar, formar e constituir tanto os homens como seus mundos - suas moradas, tanto os sujeitos como seus objetos, tanto as experiências sociais como as experiências privadas e "subjetivas" de cada indivíduo; são, em outras palavras, instalações do humano (p.26, itálicos do autor).
(17) Aliás, para Kuhn (1978) os únicos problemas que a ciência pode resolver são aqueles que se apresentam sob o forma de quebra-cabeças, portanto para os quais uma resposta/solução é possível.
(18) Amorim (1995) identifica claramente esse problema na astrologia, ao afirmar: "... a descrição astrológica enfatiza o sujeito como ser único, individual e diferente. Esse fascínio exercido pela especificidade e pela valorização do particular e do individual talvez expliquem a busca, algumas vezes desenfreada, por parte do público, de seu Eu interior, da procura de uma subjetividade, através de técnicas que debruçam os homens mais e mais sobre si próprios" (p.81).